sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Os novos "bóias" de Lisboa

Abrem esta semana três quiosques antigos concessionados a Catarina Portas, especializados na venda de refrescos. Até Outubro deverão ser 30 a dar nova vida a Lisboa. Texto de Gonçalo Frota. Fotografias de José Sérgio.

"Proponho que se officie ao governo de Sua Majestade, dizendo que a camara approva a collocação dos 'kioskos' propostos pelo sr. Dom Thomaz de mello, como uma cousa util e, até certo ponto, como um meio de embellesamento". Assim era acolhida em 1867 nas actas da Assembleia Municipal de Lisboa a proposta de Thomaz de mello de uma importação francesa - ainda que a palavra quiosque provenha do turco e sejam óbvias as influências árabes - com vista a ocupar o espaço público para a venda de refrescos e outras bebidas.A deixa foi recolhida 140 anos depois por Catarina Portas e recuperada para o projecto com que venceu o concurso para a concessão de três moribundos e/ou desaparecidos quiosques lisboetas. Assim, a 8 de Abril, a Praça de Camões, o Príncipe real (onde já existe um outro quiosque) e a Praça das Flores passarão a vender refrescos tipicamente lisboetas em quiosques completamente restaurados e de cara lavada.

Não é que se tratasse de um sonho de criança de Catarina, nem de uma febril paixão de adolescência adiada em sofrimento. Mas sempre à cata de ideias novas com que se entreter a pesquisar noites a fio no arquivo fotográfico da sua cidade e posteriormente dar-lhes forma - "é o meu desporto favorito", reconhece -, um belo dia olhou para os quiosques não como uma peça da paisagem urbana natural para quem cresceu em Lisboa, mas percebendo que havia por ali um potencial desperdiçado. A ideia deixou-a em banho-maria numa gaveta do cérebro e só quando soube da hasta pública para a concessão dos três quiosques a foi lá procurar. Comprou os poucos livros sobre o assunto e aprofundou a pesquisa. Essa aturada pesquisa sobre os quiosques conduziu a jornalista e empresária à designação Quiosque de Refresco para a aventura - que vai empregar 22 pessoas fardadas pelo estilista Filipe Faísca -, empreendida com João Regal, sócio-gerente da loja gourmet Deli Delux. E ofereceu-lhe ainda a frase-mote para os três novos estabelecimentos nas páginas de O Conde de Abranhos, de Eça de Queirós. Se no manuscrito de Eça se lia antes a fala do comendador Amado "Pois venha de lá a orchata. Vai de refresco" como um convite à prova de uma série de sabores esquecidos.

Nem de propósito, uma das bebidas disponíveis será a orchata, partilhando prateleiras com sumos de fruta, limonada, groselha, capilé ou mazagran, refresco de café, chá gelado ou leite perfumado - tudo receitas pesquisadas para respeitarem a tradição. A teoria de Catarina é simples: "Acho que as pessoas já estão um bocadinho fartas das bebidas engarrafadas, cheias de Es (emulsionantes)". A ideia passa, assim, pela recusa de bebidas artificiais e por um cardápio de bebidas frescas preparadas no dia de acordo com os xaropes desenvolvidos por Daniel Roldão, o fazedor dos rebuçados de ovo de Portalegre. Com um sorriso travesso, Catarina 'queixa-se' das "muitas provas ao longo dos últimos meses". Quem não concebe a vida ao ar livre sem uma cerveja na mão terá de rumar para outras paragens. Mas nem por isso as bebidas alcoólicas estão interditas, desde que sejam as tradicionais portuguesas - como a ginginha, o vinho do Porto, o moscatel, a amêndoa amarga ou o licor Beirão -, as únicas permitidas pelo contrato de exploração do espaço (três anos, renovável por mais dois). "Temos consciência de que se servíssemos cerveja não conseguiríamos impor os refrescos", justifica Catarina. "Vamos tentar viver sem essa oferta e apresentar alternativas. Há bebidas alcoólicas mas acreditamos que há outros sabores importantes por descobrir. E espero que possamos contribuir para que haja um ambiente mais simpático na Praça de Camões."

Nos últimos três anos, acredita, o ambiente daquela que é a porta inevitável para a noite do Bairro Alto tornou-se pesado. À parca luz que incide sobre a zona pretende agora contrapor "um quiosque que será um elemento iluminado, com um ar alegre e gracioso" entre as 07h30 e a 01h - no Príncipe Real e na Praça das Flores o encerramento far-se-á à meia-noite. A intenção é resgatar alguma vida para a Lisboa a céu aberto, "onde as pessoas podem encontrar-se, ficar a conversar, e não ser apenas um local de passagem". A mesma vida que no final do século XIX palpitava - por vezes até demais - à volta do 'bóia', o primeiro a inscrever-se no quotidiano da cidade.

O 'bóia'.Aberto em 1869, o primeiro quiosque lisboeta foi baptizado oficialmente como Elegante mas o povo preferiu chamar-lhe 'bóia'. "Uma bóia de salvação para se refrescar, se revigorar, ganhar tempo para respirar" chama-lhe Claudie Bony no livro Uma História de Quiosques. O 'bóia' rapidamente se tornou um lugar de peregrinação obrigatório e ponto de encontro de intelectuais, agitadores e sindicalistas, ganhando depois má fama enquanto poiso dos libertários. Em 1913, o quiosque situado no Rossio foi destruído por populares que o incendiaram num momento descontrolado de um cortejo durante as festas da cidade. Nessa altura, e já antes em 1990, os quiosques haviam-se popularizado e multiplicado por Lisboa fora. Só na praça de Camões, onde agora vai estar a 'jóia da coroa' do investimento de Catarina Portas e João Regal (maior beneficiário dos 60 mil euros gastos na recuperação dos equipamentos) existiam cinco, dedicados à venda de refrescos ou de jornais.

O quiosque do Camões foi o único a levantar alguma polémica, por ter sido transferido do Jardim das Amoreiras. O vereador da Câmara José Sá Fernandes explicou ao SOL que "não era original daquele espaço e estava abandonado desde 2007, bastante degradado, e como tal teve de ser recuperado". Não cumpria ainda com a actual legislação de restauração (sem casa de banho na proximidade) pelo que o Jardim das Amoreiras receberá entretanto "um novo quiosque, maior, com possibilidade de servir refeições ligeiras e com casa de banho". A abertura dos três novos quiosques de Catarina Portas é parte de uma operação da Câmara de Lisboa que pretende reabilitar e devolver à cidade cerca de 30 equipamentos do género e que, diz Sá Fernandes, "deverão estar a funcionar entre Abril e Outubro, à medida que os concursos de atribuição de concessão forem sendo lançados". O mais recente concurso, lançado esta semana, tem por objectivo atribuir a um mesmo concessionário a exploração de seis quiosques na Avenida da Liberdade, dedicados à venda de chocolates, chás, frutos, sumos naturais, petiscos, fornecendo ainda internet sem fios gratuita.

O primeiro quiosque desta acção da Cãmara, localizado no miradouro de S. Pedro de Alcântara, está nas mãos de Manuel Fernandes, proprietário do restaurante O Madeirense. pertence ao grupo dos quiosques contemporâneos (os novos, por oposição aos recuperados olisipos) e foi inaugurado em Julho de 2008. Na altura, Catarina Portas soube do concurso para aquele local mas não se entusiasmou. "Soube que iam pôr um quiosque novo no miradouro - mas nem lhe chamo um quiosque, chamo-lhe pavilhão, porque tem casas de bnho, armazéns, mesas lá dentro. Não era essa a minha ideia." O que interessava a Catarina era "recuperar aqueles que estavam ao deus dará, fechados, a apodrecer". No fundo, "tornar interessante uma coisa que estava condenada".

Agora, Catarina e João estão na expectativa daquilo que a Câmara tem reservado para os próximos meses. A vontade de alargar a rede que inaugurará daqui por uma semana é intocável. Mas só depois de se assegurarem que há quiosques antigos a entrar em concurso público é que a dupla ponderará nova candidatura. Até porque, esclarece o vereador, a maioria destes quiosques com vocação de "estabelecimentos de bebidas, com serviço de bar, cafetaria e pastelaria" é nova.

O negócio da nostalgia. Olhar para o passado e descobrir aí um futuro não é grande novidade na vida de Catarina Portas. Responsável pela loja A Vida Portuguesa - especializada em produtos tradicionais portugueses - identifica no destinatário comum à loja e ao projecto dos quiosques o segredo do sucesso. "Fiz a loja para os portugueses, não para os estrangeiros", explica. E com os quiosques adoptou a mesma lógica aplicada na loja a escassos metros da Praça de Camões, ao invés de apresentar um projecto virado para os turistas, "como os outros projectos".

Tudo começou há cerca de 15 anos, ao produzir um shopping para a revista Marie Claire inspirado no livro A causa das Coisas, de Miguel Esteves Cardoso. recentemente, lembrou-se de voltar à ideia ao pensar num livro sobre "a vida quotidiana em Portugal ao longo do século XX, nomeadamente no regime salazarista". Pareceu-lhe divertido reconstituir uma despensa de época, mas quando começou à procura dos produtos que conhecia da anterior experiência percebeu que estavam à beira da extinção. E não pôde ficar de braços cruzados. "Como fomos um mercado muito fechado durante anos algumas destas marcas não mudaram de packaging desde os anos 30 ou 40 e isso era muito exótico, sobretudo nesta época em que o design está sobrevalorizado". Assim, Catarina 'retirou' os produtos das drogarias e das mercearias, deu-lhes uma nova apresentação e passou a vendê-los ao mesmo tempo que vendia uma ideia de passado.

Não se definindo propriamente como empresária da nostalgia, Catarina prefere sustentar que "aquilo que existe e é bom só deve ser destruído se for para fazer emlhor". "Gostamos sempre mais de construir do que de conservar aquilo que temos. E é um bocado contra isso que luto em todo o lado". E como não consegue ficar parada, levou já a luta para outras paragens ao juntar-se a uma série de pessoas - entre as quais a artista Joana Vasconcelos e Bárbara Coutinho, do Museu do Design - e pôr em curso uma série de ideias a aplicar à ameaçada fábrica de cerâmica Rafael Bordalo Pinheiro. Para breve, mais novidades sobre como reviver o passado em Portugal." Tabu. 4 de Abril 2009.

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